Panorama com Clarisse Lispector, um dizer.
Acredito que toda pessoa que goste, consuma ou se interesse por literatura já se desencontrou com algum pequeno trecho da mais interessante — e única gravada para televisão — entrevista de Clarisse Lispector.
Se não um trecho, alguma frase cortada e publicada em imagens do pinterest, posts do twitter ou vídeos curtos espalhados pela internet. E com isso, venho trazer meros respaldos de alguém que ama a persona Clarisse, mas que, embora o afeto, consumiu inteiramente uma única obra sua, A Hora da Estrela.
Não sou datilógrafa, virgem ou gosto de Coca-Cola, mas já fui um pouco disso algum dia, afinal, Macabéa é um pedaço silenciosamente removido de cada brasileiro.
A entrevista começa estática. Um som vazio e incômodo relapsa antes de uma seca e direta pergunta do entrevistador: “Clarisse Lispector, de onde vem esse Lispector?”. Então, como a ecoar sobre as sombras, surgem face e voz da entrevistada, que segura um cigarro e responde após alguns segundos de reflexão.
Me peguei, quando vi essa entrevista pela primeira vez, conhecendo tão menos que o básico sobre Clarisse, tentando compreender as respostas dela e os porquês das perguntas emitidas por Júlio Lerner.
Sabia, no entanto, que parte de mim se enxergava em cada fragmento daquela entrevista. No humor, na acidez, no silêncio inexpressivo e na depressão que talvez pudesse ser tocada com a ponta dos dedos.
Você pode sentir a grandeza de algo não proclamado. Uma mulher dizendo escrever para se manter viva e sã como se aquilo fosse uma prece a si mesma. Como se seus pés estivessem calçando um par de sapatos três tamanhos menores durante uma vida inteira e só houvesse descanso nas palavras que habilmente cuspia sobre o papel.
“Eu nunca assumi. Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero.”
“Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo uma amadora.”
04:40
Então, após debater sobre suas obras destinadas ao público infantil, ela é questionada: “É mais difícil você se comunicar com um adulto ou com a criança”. Clarisse formula um raciocínio rápido e responde, portanto, uma das frases mais emblemáticas da entrevista.
“Quando eu me comunico com criança, é fácil, porque sou muito maternal. Quando eu me comunico com adulto, na verdade tô me comunicando com o lado mais secreto de mim mesma. Aí é difícil, né?”
07:02
O entrevistador prossegue o rumo da conversa. Questiona Clarisse se o adulto é solitário e ela responde que sim, que o adulto é triste e solitário. Porém, Júlio decide não parar por aí, ele a questiona outra vez.
A pergunta é sobre o momento exato em que o ser humano se adepta a forma de triste e solitário — quando ele se transforma. E ela, desta vez, apenas sorri e diz um “isso é segredo” modesto. Ela não parece interessada em responder especificamente à pergunta, como se guardasse um segredo precioso.
No entanto, aos que prestaram atenção na frase que a escritora soltou segundos antes, talvez tenham tirado uma pequena lasquinha da resposta. Algo disperso sobre a fumaça do cigarro agora apagado em um cinzeiro.
Não mais que alguns décimos de segundo após comentar sobre a solidão do adulto, ela diz que a criança não está sozinha, pois tem a fantasia solta. A criança, consequentemente, torna-se adulta, ou triste, ou sozinha, quando perde a fantasia, a imaginação.
Paradoxalmente ao dizer que não irá responder e que o adulto é só, Clarisse olha para os pés e completa a discussão.
“A qualquer momento da vida, basta um choque um pouco inesperado… E isso acontece. Mas eu não sou solitária, não; tenho muitos amigos.”
07:45
Afirma estar triste pelo cansaço. Que, num geral, é alegre. E é seguida por mais silêncio e pela vinheta.
É a justificativa usada para abrir uma nova lacuna, uma pergunta de fora sobre não conseguir viver sem escrever. Sobre uma dependência na escrita e na produção de suas obras.
Mas, ao contrário do esperado, ela diz estar morta enquanto escreve. Respira fundo como se cansada de responder algo que já questionou a si mesma milhões de vezes e, por final, fala sobre o quão duro é o período entre um trabalho e outro.
Há, para ela, a necessidade de esvaziar algo e, talvez, abrir espaço para o novo.
É questionada sobre sua rotina de escrita: prefere escrever pela cruzada entre a madrugada e a manhã.
É questionada sobre considerar a si mesma uma “escritora popular”: diziam que era hermética e como poderia ser uma escritora popular sendo hermética?
É questionada sobre como vê tal afirmação: responde que se compreende.
E, ali, nas entrelinhas, solta que existe um conto dela que nem mesmo ela consegue entender.
Obra essa que Clarisse cita ser uma de suas favoritas, junto com um trabalho falando sobre José Rosa da Miranda, morto por 13 tiros de metralhadora.
Acende outro cigarro enquanto termina a sentença de que seus escritos não mudariam nada e começando outra que enfatizava o papel do escritor brasileiro como “o de falar menos possível”.
Clarisse replicava uma insignificância sobre seus projetos. Ela mantinha a visão de que era pequena, minúscula, e tratava sua escrita como um hábito que servia como uma engrenagem, girando dentro de seu corpo e a fazendo prosseguir.
Somos embrenhados por três relatos. O primeiro falando sobre a própria Clarisse e quem era. O segundo trazendo a leitura de um trabalho da escritora por Maria Bethânia. E o terceiro, comentários da diretora Suzana Amaral, que dirigiu o filme “A Hora da Estrela” e discutiu um pouco sobre a obra e o retrato emblemático que surtiu sobre a sociedade brasileira.
Obra essa que Clarisse cita em 19:33 da minutagem e, ainda naquele tempo, era apenas um projeto. Acabado, porém não publicado: '“A história de uma moça tão pobre que só comia cachorro quente.”
Ela fala um pouco sobre o trabalho sem se aprofundar demais. Passa por momentos de sua própria vida, da nascente da ideia e, finalmente, do spoiler — tão como momento mais compartilhado da entrevista pelas redes sociais — onde uma cartomante prevê vários acontecimentos felizes em sua vida.
Clarisse diz que imaginou o quão engraçado seria se um táxi a pegasse, atropelasse e ela morresse. Crua. Ingênua. Sutil.
O restante da entrevista é voltado a “quem consome e quem não consome Clarisse”. Na mistura de autores que formularam a parte escritora dela e os problemas que essa persona trazia para sua resolução.
Ela finaliza com o sentimento de raiva sobre si mesma. Sobre estar cansada também de si. Mas, apesar de tudo, agora ela estava morta e, quem dera para nós, ela renascesse de novo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A entrevista de Clarisse é, por vezes, um refúgio para mim. A visão de alguém que escreve por prazer e martírio ou o soar de uma alma exausta por algo que sequer é comentado, mas plenamente entendido.
É difícil de engolir em certos minutos e de fácil entendimento à toda e qualquer pessoa que já sentiu o peso de estar viva e não conseguir gritar senão pelas palavras. Por ser lida ou saber que, aos sussurros, disse algo.
Eu esmiucei o quanto pude e trouxe apenas alguns pedaços porque o vídeo em si já diz tudo. Reduzi a conversa na expectativa de que algumas pessoas voltassem ao vídeo e tivessem a experiência de descobrir certos pesos e mudanças bombeando sangue nas palavras de uma autora ainda viva no ato de ser humano.
Obrigada por ler.